4 de novembro de 2005

Este texto de Pedro Strecht foi publicado no Jornal Público. É um texto tão oportuno e sério que não resisti a partilhá-lo convosco.

Cão apenas cão
Pedro Strecht (Pedopsiquiatra)

É muito pouco o que nos últimos anos se tem feito para investir condignamente na educação dos mais novos, quer isoladamente, quer nas suas múltiplas ligações às áreas da saúde, da protecção social, da justiça e do emprego.
Foi recentemente publicado um estudo da investigadora Margarida Gaspar de Matos, professora da Faculdade de Motricidade Humana que se tem destacado na área da infância e adolescência e que, entre outros, coordenou em 2002 um estudo da Organização Mundial de Saúde que, só em Portugal, contou com a realização de mais de seis mil inquéritos a alunos de cinco regiões do país que frequentavam os 6º, 8º e 10º anos de escolaridade.
Desta vez, foram quase mil os casos estudados de rapazes e raparigas das mesmas idades, tendo por objectivo "compreender as características específicas dos estilos de vida e hábitos de saúde dos adolescentes residentes em bairros desfavorecidos do ponto de vista sócio-económico". Para quem trabalha neste campo, os resultados não enganam e, infelizmente, também não surpreendem. "Estamos perante um grupo de jovens tristes", dizia a investigadora numa entrevista ao jornal PÚBLICO.
De facto, que dizer de números tão expressivos como os 61,1 por cento de adolescentes que se dizem sentir deprimidos, dos 53,2 por cento que se descrevem como tendo mau humor e dos 61,4 por cento que se acham nervosos? Que é impossível não parar para pensar e desejar para este grupo de jovens, afinal tão sofridos e desamparados no seu mal-estar, que é necessário fazer qualquer coisa que impeça a possibilidade repetida de, nestes inquéritos, se lerem frases como "Às vezes estou tão triste que não aguento", "Às vezes, fico sozinho na escola", ou outras equivalentes como as que nos narrava uma psicóloga de um serviço de Psicologia e Orientação de uma escola de Lisboa tida como problemática: "O meu pai é desatento à minha vida escolar" ou "Em casa sinto-me sempre sozinho, por isso ponho-me a jogar computador..."
Já há tempos atrás, outro estudo tinha revelado que os alunos das escolas portugueses eram, dentro da União Europeia, os que se descreviam com mais sintomatologia depressiva, quer ela fosse expressa através das clássicas alterações do humor, quer pelas queixas somáticas (do corpo), ou pelos mais importantes problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem.
Daí a necessidade de se poder olhar para este grupo de rapazes e raparigas com um olhar de presença e não de esquecimento, e com uma atitude de intervenção que, sem rodeios, procure ir à raiz sócio-familiar dos seus problemas, pois só esses explicam ainda outros dados encontrados no mesmo estudo, de que são exemplo os mais de 3 por cento que dizem deitar-se com fome, o que aponta para a gravidade de carências básicas pelas quais têm diariamente de passar alguns destes adolescentes das zonas de Marvila, Loures, Amadora e Oeiras.
Claro que, infelizmente, estas zonas não são excepção, pontos negros de um país cuja realidade da infância e adolescência está longe de ser vivida num padrão mínimo de decência. Basta analisar o ranking das melhores escolas nacionais, publicado faz poucos dias pelo quinto ano consecutivo, para se perceber que, novamente, são as escolas particulares as que ocupam sistematicamente os primeiros lugares do top. E quais são as últimas de uma longa lista de mais de outras 500? Habitualmente as mesmas: as que servem populações mais carenciadas, isoladas, inseridas por isso em zonas de grande esquecimento: Pampilhosa da Serra, Porto Santo, Ponta Delgada, Penamacor, Murça, Ourique, Alfândega da Fé, Câmara de Lobos, Lisboa, São João da Pesqueira, Proença-a-Nova, só para citar algumas dos 15 últimos postos.Não é difícil a uma escola minimamente organizada, com um corpo docente estável e coeso, favorecer um melhor nível de aprendizagem, se os seus alunos provêm de famílias com mais recursos sociais, culturais e económicos. Também não é difícil fazê-lo, se, muitas vezes, algumas condicionam as entradas desses mesmos alunos através de exames prévios a disciplinas como a Língua Portuguesa ou a Matemática e, se algo corre mal, impedem matrículas nos anos seguintes (nisso há ainda honrosas excepções). Por isso, como já foi escrito, uma boa escola mede-se muito mais pela forma como intervém no seu grupo de alunos mais difíceis do que através do que realiza com bons estudantes.
Assim, o ranking que anualmente se publica só parece servir a possibilidade de escolha (para quem tem obviamente essa possibilidade), de um estabelecimento de ensino, quase sempre particular, que garanta uma boa fiabilidade face àquilo que não há pai nenhum que não deseje: o melhor para os seus filhos. Para quem pode, essa não é uma atitude criticável. Mas o problema não reside aí; o problema coloca-se em quem não pode. Que fazem então os pais de milhares de crianças e adolescentes que também esperam poder dar o melhor para os seus filhos e, simplesmente, não conseguem chegar a determinado patamar de gastos económicos?
O que a realidade bem demonstra é que uma boa parte desses servirá para engrossar o batalhão dos esquecidos, arremessados para uma escola pública de um "salve-se quem puder", onde, em algumas circunstâncias, um destino de uma rapaz ou de uma rapariga é uma mera questão de sorte... ou de azar.
Parece pouco. É aliás muito pouco o que nos últimos anos se tem feito para investir condignamente na educação dos mais novos, quer isoladamente, quer nas suas múltiplas ligações às áreas da saúde (sobretudo, a mental, como tão bem demonstra o estudo da referida investigadora), da protecção social, da justiça e do emprego. Depois, aparecem dados tão relevantes como estes, e que fazem então muitas pessoas com responsabilidade dirigente? Parecem simplesmente abrir a boca de espanto, como se esta fosse uma realidade ausente de uma parcela importante do nosso país.
Como descrevia ainda Margarida Gaspar de Matos, numa frase que subscrevemos totalmente, "a escola protege". Pois que quem está na escola e aprende dela não foge para engravidar, para consumir álcool e todo o tipo de drogas, para se revelar forte e notado na pequena marginalidade ou delinquência, ou para simplesmente se apagar como cidadão, no enorme bando de omissos ou esquecidos do sistema.
Há ainda um longo caminho a percorrer para que se possam ouvir ou ler cada vez mais frases de um conteúdo oposto, como estas obtidas numa prova projectiva em alunos do 9ºano: "Em casa sinto-me sempre relaxada", "O meu pai é meu amigo", ou ainda "Na escola eu estou bem e gosto de lá estar com os meus amigos".
Mas, para isso, temos que abolir diferenças que só recordam a velha música para crianças de José Barata Moura: "Eu sou o cão Dom Pantaleão/ E eu cá sou o cão apenas cão."

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