17 de janeiro de 2007

Olhar Rousseau...

Olga Pombo, investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, convida-nos à leitura de Rousseau.
É uma bela síntese do pensamento do autor e que desperta o leitor para uma busca mais profunda, bastando seguir os links até às obras mais emblemáticas do pensador. Olga Pombo enfatiza a actualidade do pensamento de um homem que viveu à frente do seu tempo, conseguindo ver nele os sinais de um futuro que antecipadamente pensou. “As suas obras, de inesgotável riqueza, estão cheias de pressentimentos, alusões e pensamentos de notável actualidade.”
Evocar Rousseau é promover sentimentos contraditórios, não tanto pelos traços da obra mas, quiçá, pelas querelas ideológicas que buscam guarita nas ideias do autor. Mas não é isto que pretende Olga Pombo: “O (seu) objectivo é dar a ler Rousseau, dispersar a semente do prazer intelectual e estético que se retira da leitura dos seus textos. Mais especificamente, referir a multiplicidade de aspectos sob os quais Rousseau reflectiu e que entre nós continuam problematicamente activos, escutar o eco que ainda hoje a sua obra pode encontrar em quem a frequente com algum cuidado e percorra subjectivamente alguns dos múltiplos caminhos que ela deixa em aberto.” Da sua obra realça: “a contemporaneidade reflexiva e a multiplicidade temática e como essa multiplicidade não é senão aparente, como há uma intuição fundadora que lhe dá sentido e unidade.”

Quem é este personagem multifacetado?

Há, em primeiro lugar, o Rousseau político, acusador da sociedade do seu tempo, pensador da sociedade civil, da democracia e da liberdade. [...] Du Contract Social ou Principes du Droit Politi é uma obra capital que não aponta para uma qualquer alternativa política mas constitui uma profunda reflexão sobre as condições de legitimidade possível de qualquer regime político. Não um texto pragmático mas fundamentalmente um texto filosófico, que interroga o problema crucial das relações entre sujeito e estado, liberdade individual e interesse social, dever e direito. [...] No entanto, a obra foi lida de formas muito divergentes. Rousseau aparece como inspirador de Robespierre mas também de Napoleão, como o pai da democracia mas também do anarquismo. Uns vêem nele um liberal, outros um crítico do Estado; um revolucionário, um subversivo ou um conservador, um defensor da ordem estabelecida; um totalitarista que prevê a alienação da liberdade individual à vontade geral, a entrega total de cada homem ao Estado ou um igualitarista mais ou menos libertário que propõe a dissolução do Estado face a inalienável autonomia da vontade e liberdade dos indivíduos.

Em estreita conexão como o Rousseau político, há o Rousseau antropólogo, profeta e fundador reconhecido da moderna antropologia.

Há depois o grande Rousseau pedagogo. [...] Rousseau é o primeiro, ou pelo menos o mais veemente, defensor da diferença infantil. […] Mas Rousseau vai mais longe. Não só adopta uma perspectiva compreensiva relativamente aos valores da criança cuja diferença reclamadamente afirma, como a liberta da culpa de um pecado que sobre ela pesava desde a origem dos tempos. Se há algum aspecto em que a nossa gratidão para com Rousseau mais seja de realçar é, segundo creio, nessa sua violenta e apaixonada recusa de aceitar o postulado do pecado original.
[...]
Há também o Rousseau músico, professor de música.
[...]
Há mesmo o Rousseau botânico, o apaixonado pelas plantas que cobrem a superfície da Terra. [...] Paixão pela botânica que implica a condenação de todas as formas de exploração industrial ou industriosa dos seus segredos. O que permite falar de um Rousseau ecologista.
[...]
É que há também o Rousseau marginal, expulso e perseguido, sempre fugitivo, incansavelmente percorrendo a pele da Terra, nascido em Genebra, morto em Paris, vivendo aqui e ali.
[...]
Depois, há o grande Rousseau “écrivan”, escritor e poeta, autor de algumas das mais belas páginas da literatura francesa do século XVIII. [...] Porém, falar do Rousseau
“écrivain”, não pode consistir apenas na referência aos seus mais belos textos
literários. É necessário reconhecer o apuramento formal de todos os seus escritos, a harmonia da letra, o ritmo das frases, a inquietante beleza com que comunica, tanto as impressões mais ocasionais, como os mais profundos pensamentos e sublimes intuições. Beleza imensa e pesada que dá ao seu texto um enigmático estatuto, difícil de classificar, impossível de encenar num dos comportamentos culturais. Texto literário sem dúvida! Texto mesmo que ajuda a literatura a tomar consciência de si própria. [...] Digamos que Rousseau é demasiado bom escritor para ser apenas filósofo e é demasiado bom filósofo para ser apenas escritor. A beleza fascinante dos seus escritos perturba o acesso à claridade ideal dos seus conceitos mas, por outro lado, a profundidade dos seus pensamentos e o rigor dos seu sistema, inviabilizam uma leitura meramente literária da sua obra.
[...]
É afinal no filósofo Rousseau que Rousseau nunca quis ser que se encontra a trama sistemática de um pensamento que, de tão criador fica aquém daquilo que pensa, de tão original, se desdobra, dispersa e derrama em polissémicas direcções, como que
procurando esgotar-se e incansavelmente pensar-se até ao fim.
[...]
Filósofo “malgré tout”, há ainda um outro Rousseau de que gostaria de vos falar: um Rousseau feminino! Não se trata de proclamar que Rousseau não era afinal um homem mas uma mulher escondida sob um vestuário e pseudónimo masculinos, de anunciar a descoberta sensacional de uma personagem hermafrodita ou de revelar uma nova Georg Sand. Trata-se de interpretar diversos sinais que pontuam a obra e a vida de Rousseau, de julgar perceber a razão que os funde e a raiz que os alimenta.
"

A hipótese de leitura da obra de Rousseau que é proposta por Olga Pombo conflui num conceito de alteridade que, a meu ver, vale a pena descobrir, a não ser que o preconceito nos faça desviar o olhar.

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