Porque os tempos que correm exigem um retorno ao problema da culpa.
A culpa
A sociedade portuguesa alimenta uma desconfiança em relação à escola, criticando-a com razão e sem ela. As sondagens da opinião pública confirmam a tendência em pedir à escola tarefas de enquadramento das crianças e jovens. A escola de massas não tem conseguido responder à população discente heterogénea.
Nesta medida, as situações de mal-estar na escola multiplicam-se e não afectam unicamente os alunos. Sendo certo que na escola actual (marcadamente tradicional) os alunos têm motivos de sobra para não se sentirem bem, por que será que muitos professores vivem emoções de ansiedade, frustração e culpa?
Recorrendo ao trabalho de Hargreaves (1998)[1] aprendemos a lidar com o problema da culpa e percebemos que em doses moderadas, ela pode representar um factor de motivação, de inovação e de aperfeiçoamento. O problema é quando a culpa está ligada a sentimentos de frustração e ansiedade podendo tornar-se um factor limitador para o trabalho e para a vida do professor.
Ao tomarmos consciência das armadilhas que no ensino criam os tais excessos de culpa será possível conviver com estes sentimentos e procurar que eles sejam fonte de cuidado e preocupação pelos outros, no seio da comunidade profissional de ensino.
Sendo possível lidar construtivamente com os problemas da culpa, quando ela é sentida em doses elevadas o comportamento dos docentes pode degenerar no abandono do ensino, em problemas de esgotamento, no cinismo e outras reacções negativas. Os antídotos para resolver estes problemas actuam, na perspectiva do autor, nos sintomas e não nas causas de tais comportamentos.
Uma parte da solução para as armadilhas da culpa encontra-se a montante da escola. Há que travar a euforia legislativa que tem contagiado, fatalmente, os diversos governos.
A outra parte da resolução do problema terá de ser encontrada na própria escola, no âmbito da sua diminuída autonomia, através dos actos de gestão e no domínio da formação contínua de professores.
Hargreaves (1998) propõe um conjunto de soluções para lidar com as armadilhas da culpa que têm sido adoptadas em alguns locais:
“1. Baixar as exigências de prestação de contas e de intensificação do ensino. (...) Deter a burocracia, reduzindo a ênfase que é colocada sobre os resultados dos testes e outras formas impressas de prestação de contas.
2. Reduzir a dependência em relação ao cuidado pessoal e ao tratamento dos outros, enquanto motivo primordial subjacente ao ensino elementar, em particular, ampliando a definição de cuidado, de modo a que este abarque não só uma dimensão pessoal, mas também uma dimensão moral e social, e equilibrando os propósitos educativos de importância equivalente,
3. Aliviar a incerteza e a natureza aberta do ensino, criando, ao nível do estabelecimento de ensino, comunidades de colegas que trabalham em colaboração, estabelecendo os seus próprios limites de exigência profissional e permanecendo ao mesmo tempo empenhadas num aperfeiçoamento contínuo. Tais comunidades também podem aproximar a vida profissional e pessoal dos professores, de um modo que apoia o seu crescimento e permite que os seus problemas sejam discutidos, sem receio de reprovação ou de punição (Idem: 177) ”.
A incursão à problemática da culpa legitima-se a partir do momento em que assistimos ao avanço de uma política e prática neoliberal e neoconservadora. A análise deste tipo de questões em países como o Canadá, Estados Unidos da América e Grã-Bretanha poderá oferecer algumas pistas para melhor compreendermos o que se passa hoje em dia no nosso país. Mas seria um erro ficar por aqui. A questão principal continuará a ser a identificação dos constrangimentos que asfixiam a acção educativa e, simultaneamente, encontrar ferramentas adequadas que potenciem a qualidade do nosso trabalho.
30 de Dezembro de 2003
[1] Hargreaves, A. (1998). Os professores em tempos de mudança – O trabalho e a cultura dos professores na idade pós-moderna. Editora McGraw-Hill. Amadora.
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