Foi com este pensamento que tracei a rigor o meu destino, há tantos anos atrás. Filhos, tê-los-ei aos quarenta, antes nem pensar pois quatro meses de licença de maternidade lançar-me-iam irremediavelmente no nível Regular impedindo-me a tão desejada progressão na carreira.
E assim foi. Tudo me correu lindamente até ao décimo sétimo ano de leccionação. E ao longo desses anos aprendi a agradar a todos, aos alunos, aos pais e ao executivo da escola.
Porque chegar a professora titular implicava uma escolha entre outros muitos candidatos, a quem tudo tinha corrido igualmente bem.
Cheguei, inclusivamente, a ter alunos que passavam o fim-de-semana comigo e com a minha família. E eu até lhes passava as t-shirts a ferro e fazia trancinhas no cabelo das meninas.
E um dia a televisão bateu-me à porta para fazer uma reportagem, assim inesperadamente. Era eu de avental a servir-lhes a sopinha, a dar-lhes conselhos e a fazer-lhes festinhas na cabeça.
E o jornalista até me perguntou se também lhes cantava canções de embalar e eu disse-lhe logo que sim, que até lhes lia os "Versos de fazer ó-ó" do José Jorge Letria e que depois de adormecerem aproveitava para lhes ir lendo o "Memorial do Convento".
E expliquei-lhes que a leitura durante o sono era um método totalmente inovador em que tudo se apreende de forma suave e que assim não havia o trauma de o livro ser grande ou de os jovens não perceberem as palavras e terem de ir ao dicionário, que isso dá muito trabalho, coitadinhos!
Tudo me corria às mil maravilhas até ao dia em que uma apendicite aguda me levou à cirurgia. Oh, maldita apendicite!
E voltei à escola ainda com os pontos fresquinhos, a pensar que só tinha dado cinco faltas. Mas enganara-me nas contas com a história da anestesia. Afinal eram seis as faltas, seis! E já não teria Bom na avaliação, somente um Regular. E já não passaria a professora titular.
Foram mais seis anos de espera.
Deixa, aos quarenta e seis ainda vou a tempo de ser mãe. É uma gravidez de risco mas isso que tem, se há já quem tenha os filhos aos cinquenta, aos sessenta e qualquer dia aos cem!
Mas aos quarenta e cinco foi a hérnia discal. Oh, maldita hérnia discal!
Ainda pensei em ir de cadeira de rodas ou se necessário fosse, de maca, mas o médico chamou-me louca e reteve-me dez longos dias no hospital.
E foi assim que somente aos cinquenta e dois cheguei a professora titular. Era tarde demais para ser mãe.
Mas, meu Deus! Eu era professora titular!
Fiquei tão radiante que até me lembrei de bordar em todos os lençóis de renda, em arabescos graciosos, "professora titular", "professora titular" e em toalhas e em quadros de ponto cruz, "professora titular", "professora titular" e depois mandei gravar em todas as minhas canetas e no estojo dos lápis, "professora titular", "professora titular" e na porta do meu carro e no guarda-chuva e no guarda-sol porque, faça sol ou faça chuva, eu sou professora titular!
Agora que sou professora titular tenho, além das aulas, muitos e variados cargos que me dão tanto que fazer.
Mas ainda vou arranjando um tempinho para ir aconselhando os novos e vou-lhes ensinando como se chega a titular e como é importante ir ao médico todas as semanas e levar todas as vacinas possíveis e imagináveis e como é totalmente recomendável andar com um triplo airbag no carro.
E digo-lhes e repito-lhes: " professor prevenido vale por dois". Mas apesar de todos os meus conselhos e avisos ainda há os que, desprezando-os, se vêem de repente em maus lençóis.
Foi o caso de um brilhante ex-aluno meu, brilhante universitário, brilhante estagiário, brilhante professor que tendo passado com distinção o Exame de Estado e tendo obtido aprovação na entrevista, não conteve os seus impulsos mais genuínos e românticos durante o ano probatório, fruto da sua juventude e inexperiência e não se cansou de defender o indefensável, a exigência, o rigor, a disciplina, criticando com excessivo entusiasmo o facilitismo reinante e não se cansou de duvidar e de contestar.
E eu que lhe dizia: " Meu filho, tem tento na língua, como queres tu chegar a professor titular? Vá aprende comigo e diz "Ámen"! "Ámen"! Mas ele que não me ouviu. E deu-se o caso, vá lá saber-se porquê, de o jovem brilhante professor obter, no final do ano probatório, a infeliz classificação de 6.8 quando precisava apenas de 6.9 para integrar o quadro. E foi assim exonerado da profissão.
E teve de arranjar logo umas tabuinhas para se ir juntar aos outros muitos professores, desempregados e exonerados, lá debaixo da ponte Vasco da Gama porque ele me dizia que preferia a terra firme, senão tinha arranjado um botezinho como os outros fazem.
E certa manhã ajudei-o a levar as tabuinhas e a construir a cabaninha debaixo da ponte.
Era um dia brilhante, de cores perfeitas, em que o sol resplandecia sobre o rio azul e o sapal era verde marinho e gracioso, salpicado de aves pernaltas. Mas lá estavam as centenas de cabaninhas e os milhares de botes pacientemente amontoados. E ali tudo era cinzento e triste.
E foi nesse momento que caí em mim e vi a injustiça daquilo tudo. A minha luta para chegar a professora titular parecia-me agora absolutamente vazia e sem sentido.
Eu deveria ter lutado sim mas contra o "novo" estatuto da carreira docente de 2006!!
Por isso, como era urgente recuperar o atraso de trinta anos, transformei-me em gigante Adamastor e peguei nos milhares de professores e respectivas famílias que viviam nos botezinhos e nas cabaninhas e levei-os para o Ministério da Educação.
Todo o edifício estremeceu à nossa chegada porque nós trazíamos uma tempestade de mil dias.
Mas o "novo" estatuto depressa sucumbiu, de medo e de vergonha, porque muitas tinham sido as injustiças que criara.
Adeus "novo" estatuto! Vai e não voltes nunca mais porque nós queremos mudança mas não queremos injustiça!
* Cristina Neves
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