4 de novembro de 2007

Gerações da avaliação

A avaliação entrou na agenda da comunicação social através da regulamentação do estatuto do aluno. Senti necessidade de me situar, fugindo da discussão política, e encontrei algum aconchego neste trabalho do professor Domingos Fernandes. Destaco diferentes perspectivas de avaliação que têm prevalecido nos sistemas educativos que me ajudarão a enquadrar teoricamente a avaliação que desenvolvo na sala de aula.

“Guba & Lincoln (1989) distinguem quatro gerações de avaliação que, na sua opinião, correspondem a outras tantas perspectivas, abordagens, significados ou conceptualizações, que é possível identificar ao longo dos últimos cerca de cem anos.”

A avaliação como medida

Na primeira geração, conhecida como geração da medida, avaliação e medida eram sinónimos. Os testes passaram a ser determinantes para verificar se o sistema educativo produz bons produtos a partir da matéria prima disponível – os alunos. Em termos práticos, de sala de aula, pode significar que a avaliação se reduz a pouco mais do que à administração de um ou mais testes e à atribuição de uma classificação em períodos determinados. Ou seja, uma perspectiva em que:

  • a classificação, certificação e selecção são as funções da avaliação por excelência;
  • a avaliação é, em geral, descontextualizada;
  • os conhecimentos são os únicos objectos de avaliação;
  • a avaliação é referida a uma norma e por isso os resultados de um aluno são comparados com os de outros grupos de alunos.

A avaliação como descrição

A segunda geração não se limita a medir e vai um pouco mais longe ao descrever até que pontos os alunos atingem os objectivos definidos. A medida passou a ser um dos meios ao serviço da avaliação. A grande diferença em relação à conceptualização anterior é o facto de se definirem objectivos comportamentais e de se verificar se eles são ou não atingidos pelos alunos. […]

A avaliação como juízo de valor

A terceira geração, designada por Guba & Lincoln (1989) como a geração da formulação de juízos de valor ou julgamentos, nasce, a partir dos finais da década de sessenta, da necessidade de superar os pontos fracos na avaliação da geração precedente. É neste altura que se faz a distinção entre o conceito de avaliação sumativa, mais associada à prestação de contas, à selecção e a certificação e o conceito de avaliação formativa, mais associada ao desenvolvimento, à melhoria das aprendizagens e à regulação dos processo de ensino e de aprendizagem. A avaliação formativa constituía um processo indissociável de individualizar o ensino ou de desenvolver uma pedagogia para a mestria. […]

É no âmbito da geração da avaliação como juízo de valor que começam a surgir ideias, tais como:

  • a avaliação deve induzir e facilitara tomada de decisões que regulem o ensino e as aprendizagens
  • a recolha de informação deve ir além dos resultados que os alunos obtêm nos testes;
  • a avaliação tem de envolver os professores, os pais, os alunos e outros intervenientes;
  • os contextos de ensino e de aprendizagem devem ser tidos em conta no processo de avaliação;
  • a definição de critérios é essencial para que se possa apreciar o mérito e o valor de um dado objecto de avaliação.

No entanto, a expressão concretas destas ideias era (ainda é?) praticamente inexistente na sala de aula. […]

Síntese e limitações das três gerações de avaliação

[…] As três gerações, no seu conjunto, apresentam três importantes limitações.

  1. Tendência para as avaliações de programas, de instituições ou de sistemas edu­cativos reflectirem os pontos de vista de quem as encomenda ou as financia que, verdadeiramente, nunca são postos em causa ou considerados co-responsáveis, mesmo que também tenham responsabilidades directas no objecto de avaliação. Normalmente, as responsabilidades pelos falhanços dos sistemas educativos ten­dem a ser distribuídas quase exclusivamente pelos professores e pelos alunos, ficando de fora todos os outros intervenientes.
    No caso concreto da avaliação das aprendizagens a tendência é, muitas vezes, a de se verem reflectidos apenas os pontos de vista dos professores, como únicos
    juízes nos processos de avaliação interna, ou da administração educativa, nos processos de avaliação externa. Assim, nestes casos, as responsabilidades pelos falhanços nas aprendizagens são, invariavelmente, atribuídas apenas aos alunos.
  2. Dificuldade de as avaliações acomodarem a pluralidade de valores e de culturas existentes nas sociedades actuais. O mesmo se poderá dizer relativamente às di­ficuldades daquelas abordagens de avaliação em diversificar os seus procedimen­tos e em promoverem uma articulação mais positiva e significativa com o ensino. É um facto que os jovens estudantes das nossas comunidades são provenientes de meios sociais e culturais cada vez mais diversificados e, consequentemente, há necessidade de enfrentar esta realidade também no domínio da avaliação.
  3. Excessiva dependência do método científico ou, se quisermos, do paradigma positivista de investigação (Guba & Lincoln, 1994), que se traduz em avaliações pouco ou nada contextualizadas, com uma excessiva dependência da concepção de avaliação como medida e numa certa irredutibilidade das avaliações que se fazem, porque, segundo os seus teóricos, estão apoiadas num método que, se bem utilizado, dá resultados muito dificilmente questionáveis. Há, nesta pers­pectiva, uma orientação para os processos de quantificação através da utilização de instrumentos considerados neutros, normalmente testes, que medem com rigor e objectivamente o que os alunos sabem. É a chamada avaliação científica. Desta forma, os avaliadores nunca são postos em causa porque a adesão ao método científico liberta o avaliador de quaisquer responsabilidades. Os avaliadores são neutros, não contaminam o processo de avaliação nem são contaminados por ele.

Em termos práticos, pode dizer-se que aquelas três gerações de avaliação, cujas concepções parecem continuar a prevalecer, com maior ou menor expressão, nos sistemas educativos, estão dependentes de modelos teóricos que se adequam com muita dificuldade aos currículos actuais, às novas visões acerca das aprendizagens e às exigências de democratização efectiva de sistemas complexos e cultural e socialmente tão diversos. No caso concreto do sistema educativo português, são bem evidentes dificuldades que podem estar relacionadas com a predominância daquelas concepções de avaliação mais orientadas para as classificações e para a certificação do que para a orientação a regulação e para a melhoria das aprendizagens (Cortesão, 1993; Fernandes, IIE, 1992b; Lemos et al., 1992).

A avaliação como negociação e construção

Evidentemente que Guba & Lincoln (1989) propõem uma quarta geração de avalia­ção, de ruptura epistemológica com as anteriores, às quais atribuem as limitações que acabaram de se discutir. Trata-se de uma geração que, supostamente, responderá às difi­culdades detectadas. No entanto, os autores assumem eventuais dificuldades e limitações da abordagem que propõem, admitindo que, eventualmente, no futuro, terá de ser revista nos seus pressupostos, concepções e métodos ou vir mesmo a ser completamente posta de parte. Parece-me que esta humildade por parte dos autores indicia, entre outras coisas, uma inteligente prudência. Na verdade, poderemos interrogar-nos se os sistemas educati­vos e, mais concretamente, as pessoas que neles trabalham, aguentam certo tipo de modi­ficações ou rupturas radicais no que se refere à avaliação das aprendizagens ou em relação a outra matéria qualquer.

Pensemos agora num exemplo. Vamos supor que, tal como sucede em alguns dos países mais desenvolvidos da Europa e um pouco na linha de reflexões desenvolvidas por Cardinet (1986), há cerca de vinte anos atrás, se determinava que:

  • não se poderiam reter (reprovar) alunos na educação básica;
  • deixariam de ser atribuídas quaisquer classificações numéricas antes do 9.° ano de escolaridade, que seriam substituídas por apreciações escritas de índole qualitativa;
  • a avaliação era, obrigatoriamente, de natureza formativa.

Estou certo de que estas medidas gerariam fortes reacções contraditórias e, prova­velmente, bastante apaixonadas na sociedade portuguesa. Seriam certamente apoiadas por uns sectores da sociedade e repudiadas por outros, incluindo, em ambos os casos, profes­sores, investigadores e educadores. Mas a questão é a de saber se o sistema educativo e as pessoas que nele trabalham e as que, em certa medida, dele dependem, aguentariam este tipo de medida, mesmo que devidamente planeada e com meios que a pudessem supor­tar. O problema também reside em saber como é que a nossa sociedade reagiria a essas medidas. As concepções, as culturas, os saberes e os valores das pessoas têm aqui um papel muito importante e as resistências a medidas daquela natureza, por muito sustenta­das e acertadas que fossem, seriam muito provavelmente incomportáveis. […]

Por isso, como acima referi, parece-me prudente e sensato o realismo e a humildade com que Guba e Lincoln encaram a sua geração de ruptura, que se caracteriza por não estabelecer, à partida, quaisquer parâmetros ou enquadramentos. Estes serão determinados e definidos através de um processo negociado e interactivo com aqueles que, de algum modo, estão envolvidos na avaliação e que os autores designam por avaliação receptiva (responsive). Através desta expressão, parece-me, pretende-se acentuar o facto de se ouvirem todos os que, de algum modo, estão envolvidos no processo de avaliação. Por outro lado, é construtivista, expressão que designa não só a metodologia que efectivamente é posta em prática na avaliação, mas também a epistemologia que lhe está subjacente.

Julgo que poderemos inferir que grande parte da avaliação de quarta geração, de referência construtivista, está baseada num conjunto de princípios, ideias e concepções de que destacarei aqui os seguintes:

  • Os professores devem partilhar o poder de avaliar com os alunos e outros inter­venientes e devem utilizar uma variedade de estratégias, técnicas e instrumentos de avaliação.
  • A avaliação deve estar integrada no processo de ensino e aprendizagem.
  • A avaliação formativa deve ser a modalidade privilegiada de avaliação, com a função principal de melhorar e de regular as aprendizagens.
  • A avaliação formativa deve ser a modalidade privilegiada de avaliação, com a função O feedback, nas suas mais variadas formas, frequências e distribuições, é um pro­cesso indispensável para que a avaliação se integre plenamente no processo do ensino-aprendizagem.
  • A avaliação deve servir mais para ajudar as pessoas a desenvolverem as suas aprendizagens do que para as julgar ou classificar numa escala.
  • A avaliação é uma construção social em que são tidos em conta os contextos, a negociação, o envolvimento dos participantes, a construção social do conheci­mento e os processos cognitivos, sociais e culturais na sala de aula.
  • A avaliação deve utilizar métodos predominantemente qualitativos, não se pon­do de parte a utilização de métodos quantitativos.”

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